sábado, 19 de setembro de 2009

A técnica pura versus a expressão musical

Por: Raul Costa d’Avila
Universidade Federal de Pelotas
costadavila@gmail.com

Conforme já apontado por Harder (2008) e Rónai (2003), e segundo pode ser observado na literatura específica da flauta[1], do século XIX aos nossos dias a quantidade de literatura publicada[2] é muito extensa. Se de um lado a expressão musical deveria ser o objetivo final da grande maioria das propostas pedagógicas, via de regra a ênfase recai sobre o desenvolvimento da técnica pura[3]. Como se sabe, essa tendência não é particular da flauta, uma vez que esta cultura tornou-se predominante a partir dos novos ideais sonoros impostos à sociedade, advindos das novas concepções dos instrumentos e do repertório especialmente composto para eles. Assim, professores de instrumento, de modo geral, têm privilegiado exaustivamente a técnica, enquanto os aspectos expressivos ficam relegados a um segundo plano. Tais constatações são apontadas por Lisboa et al., quando declaram:

"Uma série de estudos revela que professores gastam relativamente pouco tempo com questões relacionadas à expressividade, ao emocional e com os aspectos estéticos da performance, comparados com os de natureza técnica. Isto é surpreendente, considerando-se que a originalidade artística — a mais pura, no sentido mais romanticamente definido — é menos freqüentemente associada às proezas técnicas do que às habilidades musicais".[4]. (LISBOA et al., 2005, p. 76, grifo meu)


Assim, neste processo, como argumentei anteriormente, as habilidades técnicas, impostas através dos “novos ideais sonoros”, são praticadas, quase sempre, de forma enfadonha e sem a “expressão musical”. Portanto, os estudos tendem a ser direcionados à técnica pura, visando a desenvolver as mais distintas habilidades, como, por exemplo, coordenação motora, destreza e fluência, muitas vezes fora de um contexto musical, o que é lamentável porque questões importantíssimas como a individualidade, a personalidade, são relegadas, indo justamente em direção oposta aquilo que Odette remete sobre seu professor ao declarar sobre a importância da personalidade, conforme poderá ser visto no subtópico “O respeito à expressão de cada um”, do capítulo 3.

Ainda na direção da técnica, Hallam (2006, p. 168) declara: “a técnica é freqüentemente enfatizada em detrimento das considerações musicais”, e completa dizendo ainda que os questionamentos dos alunos representam uma pequena proporção do tempo da aula, sinalizando que estes não têm voz ativa em sala. Ainda na direção da tendência de enfatizar a técnica, a referida autora (1998, p.234) menciona um estudo onde constatou que o trabalho técnico recebeu 59% do tempo da aula, contra 20% para notação, 16% para a habilidade “aural”[5] e 5% para a expressão e forma.
Portanto, contrapondo a ênfase demasiada às questões técnicas, autores como Lussy (1931), Thurmond (1991), Artaud (1996), Sloboda (2000), Juslin e Person (2002), Lisboa et al. (2005), dentre outros, apontam para a importância em desenvolver procedimentos de ensino voltados aos aspectos expressivos.

Thurmond (1991, p. 18) declara que durante anos se pensava sobre a expressão como algo impossível de ser ensinado, sendo adquirida pelo músico somente depois de assegurar mestria técnica, possibilitando-lhe encontrar a si mesmo musicalmente[6]. Acreditando que ela poderia ser ensinada, o autor desenvolveu sua metodologia escrevendo um importante livro, “Note Grouping – A Method for Achieving Expression and Style in Musical Performance”. Conforme o autor declarou, este fato aconteceu pela vontade de ajudar muitos estudantes hábeis tecnicamente, proficientes em seus instrumentos, mas aos quais faltava vida em suas execuções, “calor”, qualidades, segundo ele, necessárias ao sucesso dos artistas concertistas.

Ao abordar sobre como progredir tecnicamente, Artaud (1996, p.108) argumenta a importância de não só racionalizar os esforços que envolvem o estudo das técnicas[7], mas também de refleti-los, salientando que o trabalho deve ter o objetivo da expressão musical, fato que, infelizmente, conforme apontaram Lisboa et al. (2005, p.76), ainda é surpreendente em nossa realidade porque, de acordo com estudos mais recentes, se gasta mais tempo com questões relacionadas com a natureza técnica do que com questões relacionadas à expressividade, ao emocional e a aspectos estéticos da execução.

Sloboda (2000, apud HARDER, 2008, p. 39) declara que as “habilidades em performance instrumental não são apenas técnicas e motoras”. Ainda conforme Harder, para o autor “São necessárias também habilidades interpretativas que gerem diferentes performances expressivas de uma mesma peça de acordo com o que se quer comunicar de forma estrutural e emocional” (ibid), fato que, como se pode perceber, integra a relação entre habilidade técnica e expressiva, reforçando a opinião de Artaud. Nessa direção Juslin e Person (in PARNCUTT & McPHERSON, 2002, p.219-238) apresentam um capítulo onde desenvolvem o tema “Comunicação Emocional”[8], estabelecido por eles como “situações onde o performer pretende comunicar uma emoção ao ouvinte”. Os autores declaram haver muita coisa escrita sobre expressão na música, onde desde a antigüidade até os tempos modernos uma variedade de idéias sobre o que a música é capaz de expressar tem sido revelada[9]. Os autores também declaram que as emoções são difíceis de definir e medir, mas pesquisas creditam que provavelmente a emoção consiste de muitos componentes, entre eles: avaliação cognitiva, sentimento subjetivo, fisiologia e expressão, além de outros. Assim, além de os autores demonstrarem uma preocupação em desenvolver estratégias para o ensino e para a resolução de questões fora do âmbito da técnica, eles defendem a posição de estabelecer um equilíbrio entre expressão e técnica, posição também compartilhada por Artaud, conforme foi visto.
OBS. Tese completa, clique no link:


[2] Tratados, métodos, cadernos de estudos e livros sobre flauta, entre outros materiais afins.
[3] “[...] define-se como o estudo da técnica pura com a finalidade de desenvolver coordenação motora, destreza e fluência, fora do contexto musical. Restringe-se ao estudo de escalas, arpejos, notas dobradas, variações intermináveis sobre motivos repetidos em determinada tonalidade ou modulantes, constituindo-se na preparação do músico atleta que aspira a uma técnica perfeita, seja qual for o instrumento. Assim como o dançarino ou o desportista, esse músico busca precisão e controle, trabalhando passo a passo cada movimento dos mais variados tipos de técnica instrumental”. (SERRÃO, 2001, p. 12 apud RÓNAI, 2003, p.69)

[4] A number of studies reveal that teachers spend relatively little time on expressive, emotional and aesthetic aspects of performance, as compared with those of a technical nature. This is surprising, considering that artistic originality - in its purest, most Romantically defined sense - is less often linked with technical prowess than to musical abilities. (LISBOA, et al., 2005, p.76, grifo meu, tradução minha)

[5] Conforme TAIT (1992, p.529), a modelagem aural é uma estratégia não-verbal que pode melhorar tanto a habilidade quanto o desenvolvimento criativo. “Este método tornou-se um direto e um econômico meio de comunicação não-verbal e não-instrumental porque não requer nenhum conhecimento altamente técnico; [...]” (TAIT e HACCK, p.86, 1984) De acordo com David ELLIOT (1983, apud TAIT, 1992, p.529), a modelagem aural tem sido uma parte intrínseca e natural do jazz, onde a linguagem corporal reforça o sentir os acentos, síncopes, inícios e terminações de frase, clímaces, pontos de cadência, gestos dramáticos, e o crescer e decrescer da dinâmica.

[6] A propósito da argumentação de “encontrar a si mesmo musicalmente”, SANTIAGO (1992, p.221) declara algo a este respeito muito pertinente: “O educador musical consciente deve preocupar-se em oferecer a seus alunos a possibilidade do jogo musical que favoreça o encontro consigo mesmo e a percepção de diversos elementos musicais, conduzindo-o para a conscientização do que realiza e para a abertura a um número variado de possibilidades”. [grifo meu]

[7] Ainda que o conceito sobre “técnica” apresentado aqui esteja contextualizado especificamente à flauta transversal, pode ser feito um paralelo com outros instrumentos de um modo geral. Portanto, de acordo com ARATUD (1996, p.107): “o termo ‘a técnica’ é utilizado impropriamente no singular. Não existe uma, mas diversas técnicas a controlar: vibrato, respiração, trabalho dos lábios, da língua, trillos, boa posição dos dedos, terças, quartas, oitavas, ornamentos, articulações, intervalos, notas longas, dinâmicas, constituem alguns tópicos propostos nos capítulos essenciais. Poder-se-ia enumerar mais de 300. [...]”.

[8] Emotional Communication
[9] Entre estas idéias destacam-se: emoção, beleza, movimento, forma expressiva, energia, tensão, acontecimentos, crença religiosa, identidade pessoal e condição social.

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